Crônica - Roniwalter Jatobá

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 15 - Março 2010

Nathan Sawaya, Untitled 1, Plastic Bricks, Sculpture


Sonho na escuridão

Depois de um difícil dia de trabalho nas imediações do Teatro Municipal, o soldado Otacílio Silveira Lima voltou para casa na Vila Ré, onde morava com a mulher e três filhos. Após o jantar, viu televisão até bem tarde, entretido com um filme de suspense. À noite, sonhou que fazia parte de um pelotão escalado para expulsar um grupo de moradores, incluindo sua família, de um terreno da prefeitura às margens do Tietê.

No sonho, acorda de madrugada. Senta na cama e passa um pedaço de pano na testa molhada de suor. A mulher ao lado dorme o segundo sono, quatro da manhã em ponto, rosto virado para a parede branca da moradia simples. Ele veste a farda, o pensamento longe no quartel, e se prepara para a missão mais complicada de sua vida. Conhece tudo dali, dos buracos das ruas à rotina dos moradores.

Quando se boatou que a prefeitura ia precisar daquela terra para uma estrada de carros, um prédio com vista virada para o rio, todo mundo logo pensou na pior. Aí, na semana seguinte, de segunda a sexta, funcionários vieram de casa em casa com a intimação para desalojar. Os servidores só entregando a papelada, depois viravam as costas e iam embora.

Uma tarde, um morador perguntou para outro:

-- Quando vai ser?

Um deles, choroso, respondeu:

-- Domingo. Ninguém deve sair.

-- Ir pra onde, meu Deus? -- indaga uma mulher, lamento que ninguém ali ouviu.

Otacílio sonha agora que começa a despertar para o dia do despejo, vista pesada acorda-não-acorda, a barba do dia anterior espetando as mãos. Logo, o cabelo penteado às pressas, o café ligeiro na garrafa térmica, o até logo para a filha mais velha, já acordada. Farda com vinco, coturno lustrando, ele pisa forte a caminho do quartel. Cruza com pessoas conhecidas que olham para ele com ódio, depois somente vultos desconhecidos passando de longe. O soldado Otacílio cada vez mais se afasta de casa e da mulher que revira na cama, mas continua a dormir num sono agitado.

Ainda no sonho, o soldado Otacílio chega ao quartel logo cedo. Entra já sabendo de tudo, sem abrir a boca, calado. Caminhou para o pátio e entrou em forma. Esperou. Ordens? Sim.

O coronel Guedes gritou na frente -- sentido! -- todos uniram as pernas, os braços grudados ao corpo -- marche! -- os pés de todo o pelotão comandados, guiados pelos brados -- rápido! rápido -- subindo o grito, subindo os homens nos caminhões.

Otacílio, passos pesados, sofre um aperto no coração, mas acompanha os outros policiais. Logo, o caminhão que o transporta sacoleja nas ruas esburacadas e salta duro nas ruas de terra batida, agora enlameadas.

Na várzea do Tietê, foi perdendo a mansidão das vozes dos moradores, entre eles os mais antigos, Biju, Jesuíno e Maria de Lourdes. Lurdinha, como era chamada, se espantou de vez com o aparato, mais ainda quando os soldados saltaram dos caminhões e dobraram a pé a subida do morro, quase chegando na estrada de ferro. Em seguida, desceram velozes, pés batendo fortes na lama das poças d’água paradas no meio da rua.

Lurdinha sabia: não era festa militar, não era brincadeira. Sai todo mundo por bem ou por mal, tinha dito o homem da prefeitura.

O soldado Otacílio é o último do grupo a chegar aos barracos. Ele avista sua mulher e os filhos na porta da casa, sombras paradas no meio do burburinho.

-- Bunda mole -- grita um policial superior para ele, que se afasta margeando a casa de Lurdinha, sem nada nas mãos, se escondendo do pensamento que lhe vinha subindo no peito e crescendo desde a subida no caminhão no interior do quartel.

-- É o fim do mundo, é o fim do mundo -- começa a gritar Otacílio, mão amassando o quepe suado. -- Vai. Passa por ali. Pisem na água parada do rio Tietê que ninguém se afunda nela. A nossa terra, vê lá, é do outro lado -- ele continua aos gritos, mas tem a impressão que poucos entendem o que ele fala.

Em seguida, o soldado Otacílio acorda de verdade, banhado em suor na sua casa na Vila Ré. Levanta-se e certifica-se se os filhos estavam em paz na quente noite de verão. Depois, volta, empurra um pouco a mulher para o outro lado da cama e continua a dormir. Retorna ao mesmo sonho, mas agora ele está à frente do pelotão e abre a porta da casa do invasor de terras com a coronha do seu fuzil.

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