Conto - Jeanette Rozsas

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 15 - Março 2010

Kiko Escora, "Untitled", Acrylic on Canvas, 122 x 91, 2002


Fugidias

Quando o crisol se pôs atrás do grande gnômon, raios de ouro se espalhando pela caferana insípida, pensei em você, meu ergástulo, minha enxovia, e a saudade avançou serena e ríspida, como café-bravo em noite de novilúnio.

Lembrei, amado, daquela última vez em que juntos vimos o canguçu se esgueirar pelo asfalto e a iritacaca subir lentamente pelo caule do cacundeiro, agarrando-se às lanosidades da madeira como se fossem corpos de homens já defuntos, cheios de amor para dar. Enquanto isso, nós dois, pobres opróbrios solitários, nos atirávamos um ao outro, náufragos em dia de tormenta, buscando o outrora de nossas vidas; sem perífrases ou atoledos a ocultar as sífilis do verdadeiro desencanto, mal sabíamos que naquele momento nos tocaiava a câmara-ardente de nossos destinos desatrelados.

Daquele encontro, amor, o último que tivemos, sortilégio pranto resultou em vida, e assim, meses depois, veio a lume aquela que seria nossa filha, estonteante bem-fazeja, a fada dos meus dias de prumo norte.

Mas por pouco durou o solstício, pois a comunidade via, no ditoso, o malprocedido, e dos braços arrancaram-me a pequena ave- pássaro, transformando o encanto em pungente desdita e em incessante busca. Eneândria, esse o seu nome, ao menos para mim, coração materno, pelo tanto que eu soubesse, poderia estar morando em algum medronheiro distante; no entanto __ai de mim __ estava lá mesmo em Aleatória, terra de nosso amores, a menos de uma olha da chicana de onde me foi enfestada.

Quis o destino que a fome à minha cimba batesse, e assim fui peregrinando trabalho nas circunjacências. Cansada de andar por casquilharias e defluxos, já no tárdego do dia, quase anoitecendo, estanquei diante de imponente ratafia de estilo neocíclico, situada sobre deganha espraiada, de onde se insurgia toda a cidade, numa visão verdadeiramente endoparasítica. Eu pensava em Eneândria todo o tempo, e, por via de consequência, naquele que a enfestou: você, amado meu. Eis quando a porta se abre e vejo um jardim cheio de crestadeiras que crepusculejavam no frâncico da entrada. Um mor-dobre , carregando um chumacete, pergunta-me, altivo, o que desejava. __Comida__ respondi,__ e trabalho; se possível, uma enxerga onde possa descambar meus ossos nodosos.

Com toda a filustria, o dobre deixou-me quedar ali e logo me apresentou sua filha hermosa, de nome Grindélia, tão linda e da mesma idade de nossa Eneândria, se não me tivesse sido evolada sob o mantispídeo de algum feiticeiro madrasto. Logo passei a dedicar a Grindélia o amor que por direito reservara à nossa filha, a um tal ponto que o mor-dobre, enciumado de minha parvuleza, providenciou meu imediato partino. Ah, que injusto fado o de me ver novamente pulseando pelos descaminhos da vida, sem saber onde encontrar os dois tesouros do meu existir, doces arabescos esfumaçados num véu de bruma, que, no entanto, eu não perdia a jaza de vir a reencontrar. Você e Eneândria, amado meu, haveriam de voltar, e eu sonhava com esse dia, quando então uma persofonia de pássaros nos carregaria em êxtase, sobrevoando felizes, aquecidos pelos raios seladoiros que do grande gnômon aspergiriam.

Assim começou minha entrecha por esse vasto mundo em mendicância fradalhada, até que uma horda de bamburristas, trajando cochonilhas brancas, me entrebateram, casulando-me nesta albergaria nada hospitaleira, onde mentecaptos menoscabam minha melúria e, através de poções e tisanas morfíneas, descocam qualquer clamor, chamando-me de louca, imagine, de louca...

Jeanette Rozsas é contista e romancista. Tem trabalhos publicados em revistas literárias do Brasil e do exterior e colabora com os principais sites de literatura. Publicou, entre outros, os romances As sete sombras do gato (Idea Editora) e Morrer em Praga (Geração Editorial), selecionados pelo Projeto de Apoio Cultural da Secretaria de Estado da Cultura. Seu romance biográfico Kafka e a marca do corvo (Geração Editorial ), lançado em maio de 2009, já está na segunda edição e vem recendo o aplauso da crítica especializada.

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