Conto - José Miranda Filho

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 15 - Março 2010

Alex da Silva, "Lhe Falo do Sertão", 2009, acrylic on canvas, 32" x 32"


O Retrato do Sertão - 1

O sertão brasileiro, recanto imensurável de planícies desertas é a região que ostenta o menor índice pluviométrico do país. A escassez de chuvas deve-se a influência nefasta do relevo. Entre os meses de outubro e março, ocasionalmente pode ocorrer chuvas em algumas áreas. Mas são os ventos alísios que sopram do hemisfério norte que trazem perspectivas de chuvas entre os meses de dezembro e abril. Porém, nem sempre isso acontece e a estiagem pode se prolongar por meses e anos, dando origem à seca e causando tragédias cíclicas, tempo em que o sertanejo com o coração partido, abandona suas terras, sua família e migra para outras regiões em busca da sobrevivência. O imbuzeiro e o mandacaru começam a dar sinais de cansaço, enquanto o urubu revigora seus vôos à procura de carcaças de animais abatidos pela sede e escassez de alimento. Alguns frutos sobrevivem para não estarrecer de vez a esperança do sertanejo.

O sertão brasileiro abrange grande parte dos Estados do Nordeste, região que nos inspirou esta narrativa. Nesse rincão de antigo domínio europeu surgiram as primeiras revoltas de inconformismo do povo nordestino: Desde o motim dos Quilombos à revolta de Canudos, até o cangaço de Lampião. Dos inúmeros rios, riachos, açudes e brejos existentes, alguns são temporários, enquanto outros sobrevivem graças à benesse da natureza que lhes dá origem em Estados de maior relevância e de alto índice pluviométrico. Assim vive o sertanejo cercado de lendas e de lutas.

Apoiada numa bengala de pau com solado de couro de boi para não escorregar, ela se dirigiu ao alpendre da casa construída de taipas, e sob a janela sentou-se num banquinho de madeira de três pés feito por um dos filhos. De lá observava e comandava todo o movimento do roçado. Com mãos trêmulas pegou o cachimbo de barro, colocou o pouco do tabaco que ainda restava do bornal, deu duas baforadas esfumaçadas que se esvaíram rapidamente no ar e cuspiu longamente sobre o piso de chão de barro empedrado pelo tempo. Ao seu redor algumas galinhas ciscavam a procura de restos de alimento que se juntou na toalha retirada da mesa de madeira e lancada no terreiro. Sentiu-se Nhá Marina naquele momento aliviada dos percalços da vida. Prendiam lhes os cabelos brancos e escassos que ainda lhes restavam, um atavio de chifres de boi, enfeado, velho e descorado, recordação dos tempos de mocinha.

Nhá Marina, como todos a conheciam, cujo nome de batismo era Maria Ferreira de Albuquerque Santiago tinha 102 anos de idade. Nasceu em 1908, nos arredores do município de Angico, sertão de Alagoas, no sitio Poços dos Anjos. Viúva por duas vezes, teve dez filhos e oito netos. Bisnetos estavam por vir, filhos de Agamenon e Giselda. Ao anoitecer, sob a luz das estrelas e da lua quando era verão bruto no sertão, rodeada pelos filhos e netos gostava de contar a saga de Lampião que o conheceu quando tinha doze anos de idade.

Naquele pedacinho de terra, cizânia do sertão bravio esquecido de todos e longe da civilização, ela criou os filhos com ajuda do segundo marido, Zé da Vila, cabra macho por quem se apaixonou quando o conheceu numa festa de São João. “O primeiro marido, pai de sete dos seus dez filhos, havia morrido por uma chifrada do boi “cabreiro”,um dos zebus mais ferozes do “seu” Quincas”, fazendeiro, compadre e amigo para quem trabalhava.

-Bás tarde Nhá Marina, como vai? Disse Zequinha da venda.

Ergueu os olhos assustada, e num ímpeto de curiosidade, indagou:

- Quem é você?

- Sou o Zé, filho de Maninha...Zequinha da venda. Vim trazer umas coisinhas que a mãe mandou pra Senhora.

-Senta aqui, meu fio. Como vai sua mãe?

- Ela lhe mandou lembranças e recomendou-lhe repouso.

- Pois diga pra sua mãe que é ela quem precisa de descanso. Eu tô muito bem, de manhã já dei mio pras galinhas, pras cabras, rocei, cuidei do terreiro, da chafurda, fiz o armoço prus fios, e agora tô baforando meu cachimbo.

Diante disso, Zé da venda, entregou-lhe a encomenda e se mandou, mais ligeiro do que chegou.

Catou os óculos de casca de tartaruga confeccionados por um artesão local, o mesmo que talhava as peças de Lampião, e colocou-os sobre os olhos verdes e grandes, até que pudesse abrir pacientemente a sacola com as mãos rígidas e calosas que os anos lhe proporcionaram.

Nhá Marina contava que quando tinha doze anos, Lampião e seu bando chegavam de repente nas redondezas e aliciavam jovens como ela e as levavam ao acampamento para participarem das rodilhas que costumavam fazer depois de investidas vitoriosas aos sítios da região.

Certo dia já tardezinha, os cabras de Lampião vieram à sua casa e com a permissão do pai, levou-a com os olhos vendados para não identificar o lugar.

- Numa noite linda de lua cheia, eu, Izilda, Mariinha, Elzirinha, Manelita e Estelinha, estávamos brincando de rodas no terreiro quando ouvimos o tropel de cavalos se aproximando - contava Nhá Marina aos filhos e netos.

- Chegaram na maior confusão e foram logo apeando dos cavalos e perguntando pelo pai.

- Cadê o compadre Zé? Quis saber um dos cabras de nome Colchete.

- Ele está na chafurda cuidando dos porcos, respondeu Nhá Marina, enquanto as outras meninas correram para o jirau temerosas de serem molestadas.

Com o consentimento de Zé Ferreira, pai de Nhá Marina, elas foram levadas ao esconderijo de Virgulino para participarem da festa de seu casamento com Maria Bonita.

Dançaram e se divertiram a noite toda com os “cabras” que chalaceavam ao redor da fogueira ardente, no esconderijo, em meio a mata virgem.

- Naquela noite, sob estrelas luzentes no meio da caatinga ao entorno da fogueira, dançamos com os cabras, alguns já embriagados de tanto beberem – prosseguia Nhá Marina com suas estórias. No dia seguinte, ninguém queria voltar pra casa. Queríamos que a festa continuasse, de tão boa que estava. Comida não faltava, tinha de tudo: bode assado, cabrito, carne de boi, feijão, doce de mandioca, milho assado...e a sanfona adoidada que Corisco escorregava nos dedos, contava baforando o cachimbo de barro que rolava de um canto ao outro da boca desdentada.

Quando alguém lhe perguntava se não sentiram receio de serem molestadas, ela respondia com um sorriso maroto que ia de um canto ao outro da boca:

- O capitão Virgulino era um homem sério, honesto e de palavra. Em nenhum momento fomos “bulidas”, graças à vigilância que ele sempre mantinha sobre seus cabras. Terminada a festa, ele ordenou que nos trouxessem de volta para casa, cada uma montada na garupa de um cavalo. Recomendou aos cabras que não esquecessem de agradecer a nossos pais pela confiança e o respeito que tinham por ele.

Cada menina recebeu um mimo do Capitão, contava Nhá Marina. O dela era uma tiara confeccionada em chifre de boi ornada com pequenas estrelas de prata que guardava cuidadosamente num baú de madeira debaixo da cama, ao lado do pinico de zinco. Tanto se orgulhava de usá-lo que ao colocá-lo sobre os escassos cabelos brancos, ficava horas e horas diante do pequeno espelho pendurado à cabeceira de sua cama. Usava-o notadamente nas festas de São João e cantorias de rodas nas noites de lua cheia no terreiro de chão seco...

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